Experiência de vida como Testemunha de Jeová
A minha experiencia com as Testemunhas de Jeová (TJ) confunde-se com a minha experiencia de vida. Com 30 anos de idade quase 20 foram passados como TJ.
Devido às circunstâncias da vida, comecei a viver com os meus avós paternos muito cedo, até aos 4 anos não a tempo inteiro, mas após os 4 anos de idade passei a viver com eles de segunda-feira a sábado, passando apenas o fim do dia de sábado e o domingo maioritariamente com a minha mãe e escassas vezes com o meu pai.
Enquadrando esta situação, tenho de sublinhar que os meus avós já eram TJ (avô ancião) há muitos anos, mas os meus pais não. O meu pai apesar de ter chegado a estudar e a ter designações na escola do ministério teocrático, desistiu ainda jovem e nunca voltou, nem nunca teve aquilo a que se possa chamar uma vida cristã. Já a minha mãe nunca estudou nem nunca se interessou pela religião, apesar de respeitar profundamente as convicções dos meus avós e de ter assistido a meia dúzia de reuniões.
Nestas circunstâncias comecei a assistir às reuniões ainda não sabia falar, mas deste tempo obviamente não guardo grandes memórias. As memórias mais vivas começam com os sentimentos de desconforto que consigo sentir ainda hoje. Sentimentos originados com as idas á pregação, para mim a pregação era como uma dor física, pode parecer exagerado mas para mim era uma violação, desculpem se parece chocante mas é o que sinto!
Vivi a minha infância e o inicio da adolescência com uma enorme dualidade de sentimentos, eu amava muitíssimo os meus avós, temia a destruição, não queria desiludir nem os meus avós nem Jeová, mas tinha os meus pais com quem celebrava o Natal, os aniversários e tudo o que se considerava mundano. Só quem passa por isto consegue imaginar o que isto faz á cabeça de uma criança. O que este jogo de fidelidades me fez para o resto da vida…
Eu sabia que bastava uma palavra à minha mãe para que o suplício que era a pregação acabar, mas desiludir os meus avós e Jeová não era uma opção.
A minha vida era basicamente assim: TJ zelosa, apavorada, que celebrava o Natal e os aniversários…
Sim, toda eu era uma contradição!
Sentia-me culpada a cada momento de felicidade passado com a minha mãe na celebração do natal com a família da parte dela. E a cada aniversário o sentimento repetia-se.
Na congregação era muito amada (achava eu), muito acarinhada também porque era uma congregação do centro de Lisboa e portanto muito envelhecida, onde só havia uma outra criança.
Na adolescência resolvi que queria ser uma pessoa igual às outras e comuniquei á minha mãe que estava farta daquilo. Fui aconselhada a ter uma conversa com os meus avós, a minha mãe infelizmente não percebia a dimensão da situação, eu sabia, e foi precisa muita coragem para ter essa conversa. Disse á minha avó que não ia mais às reuniões nem á pregação. Foi um drama, muitas lágrimas mas nem uma má palavra por parte da minha avó. Uns dias mais tarde, dia de reunião, os meus avós estavam a sair e eu ia ficar em casa pela primeira vez. O meu avô (que não tinha dito uma palavra sobre o assunto ainda) disse-me: “andaste toda a vida a enganar toda a gente”, num tom de voz que eu nunca lhe tinha ouvido nem voltei a ouvir. Ainda hoje tenho esta cena impressa na memória de uma forma tão vívida que ainda sinto a mesma dor que tive naquele momento.
Depois desta situação, pouco tempo passou até que eu me tivesse envolvido em todos os disparates típicos da adolescência, apaixonei-me, namorei, tive relações sexuais, deixei de estudar, comecei a fumar, experimentei drogas leves, fiz tudo aquilo a que tinha direito.
Lutei muitas vezes comigo própria, senti-me culpada muitas vezes, senti-me indigna aos olhos de Deus muitas vezes, mas levava a minha vida de uma forma despreocupada.
Quando eu tinha 18 anos a minha avó ficou doente, eu levei-a ao hospital e fui confrontada pelo médico com a seguinte notícia: “a sua avó tem um cancro, no sítio onde está é incurável, vamos interná-la”. E o meu mundo desabou ali, naquele instante. Chorei horas seguidas até ter forças para dar a notícia à restante família. Começou naquele dia um calvário para a minha avó, para mim e restante família que durou vários meses e terminou com o seu falecimento.
Durante esses meses a minha avó esteve na casa onde eu morava com a minha mãe, sendo as visitas de TJ permanentes, juntando tanta TJ a entrar e a sair com a minha vulnerabilidade apareceu um estudo bíblico para mim. Obviamente que o estudo eram para mim repetições da matéria dada, e como fazíamos um estudo muito mais aprofundado a minha relação com a minha instrutora rapidamente se estreitou e em poucas semanas. Comecei a ir às reuniões e a ser participante dos encontros de jovens (que aqui na zona aconteciam todos os fins de semana). Nesta altura eu namorava e impus como condição para continuar o namoro que ele teria de estudar também e que não teríamos mais relações sexuais antes de casarmos e que tínhamos de deixar de fumar. Ele aceitou tudo.
Depois de tão doloroso processo a minha avó faleceu em meados de Janeiro, eu casei-me no inicio de Março. Fomos ambos baptizados na assembleia de distrito no estádio do Restelo nesse mesmo verão. Todas estas decisões foram tomadas ainda durante o processo de luto da pessoa que foi uma mãe para mim e que eu amava de uma forma difícil de descrever.
Fui uma TJ zelosa, pioneira auxiliar ainda durante algum tempo, depois pioneira regular pouco tempo. Estas opções de serviço como pioneira provocaram várias dificuldades no meu relacionamento com a minha mãe já que eu trabalhava para ela e simplesmente fazia o meu próprio horário, o que tinha prioridade era sempre a pregação e o trabalho não era feito.
Tinha um enorme grupo de amigos. Parecia que tudo corria muito bem, até que um dia tomei consciência do que já sabia há muito, que o meu casamento tinha sido um erro enorme, eu não amava aquele homem, apesar de ele ser uma pessoas fantástica!
Falei com o meu marido, expliquei que não podia continuar casada, que não era feliz. Como estava bem treinada, o passo seguinte foi falar com os anciãos. Obviamente foi um choque! Chamaram-me depois para uma reunião (penso que era uma reunião porque ninguém me disse que seria outra coisa) onde me perguntaram de tudo: se eu tinha sido infiel, se o meu marido tinha sido infiel, etc… onde me foi dito, depois de eu assumir claramente que quem queria a separação era eu, que se o meu marido se matasse com o desgosto eu teria culpa de sangue, acompanhado com um texto bíblico que eu já não fixei, tal foi o choque de ouvir esta frase.
A pressão nesta fase foi muita, tiraram-me todos os privilégios, toda a gente olhava para mim de lado, ameaçaram-me que seria desassociada (o que me deixou em pânico), e eu não entendia como era possível que o Deus que eu amava quisesse que eu fosse infeliz o resto da minha vida.
Nesta altura estávamos novamente em tempo de congresso de distrito, eu falo com o meu avô para tentar falar com os anciãos da minha congregação para tentar perceber porque eles me queriam desassociar. O meu avô não concordava que a separação fosse a razão para desassociação.
A pressão continuou, reuniões com anciãos em que me faziam sentir culpada de tudo até de respirar, nas reuniões já quase ninguém falava comigo como dantes. Resolvi ir passar um fim-de-semana fora, sozinha para tentar colocar as ideias em ordem. Não resultou, caí de volta no vício que tinha deixado cerca de 2 anos antes e voltei a fumar.
Quando voltei desse fim-de-semana não passaram muitos dias até que alguém me tenha visto a fumar e tenha de imediato dito aos anciãos.
Fui ao salão para assistir à reunião no fim-de-semana seguinte e junto ao balcão de literatura um ancião perguntou-me se era verdade que andava a fumar, respondi com a verdade e já não assisti á reunião. Escrevi-lhes uma carta, da qual infelizmente não guardei cópia, a explicar que não me tinha sentido minimamente apoiada em momento algum, que se calhar se tinha recomeçado a fumar alguma razão haveria de haver, e que eles não tinham mostrado nenhuma sensibilidade.
Não voltei a reunir com ninguém, julgo ter sido desassociada com base no que estava escrito nessa carta. Soube que seria desassociada por um ancião que me disse que a reunião para me desassociar estava marcada. Fizeram o favor de avisar eles próprios o meu avô pelo telefone.
Soube mais tarde que era voz corrente que eu tinha cometido adultério…
Fui impedida de ir para a casa de férias de família logo nesse mês de Agosto, o meu avô estava lá e para minha infelicidade o Ministério do Reino desse mês (Agosto de 2002) tinha um artigo sobre como tratar os desassociados que me foi lido ao telefone.
Nesta altura fui-me completamente a baixo, a minha vontade de viver desapareceu. Estive um mês deitada no sofá, levantava-me para comer e poucas vezes. Quem me valeu foi a minha mãe que deixou que eu recuperasse no meu tempo, deu-me o privilégio de ter tempo, de estar lá para quando eu precisei e esperar por mim.
Algum tempo depois o meu avô voltou a casar e eu só soube do casamento meses depois e pelo meu pai.
Fui tentando manter alguma relação mas fui sempre “sacudida”. Recentemente fiz uma nova tentativa. Com uma conversa franca perguntei se havia alguma possibilidade de termos uma relação mais próxima da normalidade. O meu avô respondeu que não, porque eram as ordens da Organização!
Eu apelei para o facto de ele não estar a acompanhar o crescimento das bisnetas mas nem isso o demoveu. Ele disse-me que a única forma da nossa relação normalizar seria eu voltar a ser TJ. A minha resposta, com lágrimas dolorosas a escorrer na minha cara foi: “eu nunca voltarei! Desculpa mas eu não posso!”.
A dor desta conversa ainda dura e vai durar.
Fui tratada como não se trata uma pessoa que apenas procura ser feliz. Eu só queria não estar casada com quem estava.
Durante anos não consegui fazer novos amigos. Ainda hoje é muito difícil, uma vez que confiar nas pessoas é para mim um esforço sobre humano. Tenho dificuldades em lidar com figuras de autoridade, não só mas também, por causa de tudo isto.
Várias marcas estão em mim até hoje, sentindo ainda uma imensa revolta e de cada vez que me cruzo com pessoas que eram minhas “amigas”, visitas de minha casa, pessoas que ajudei, ainda aparece um nó no estômago.
Continuo a procurar a perfeição, não me desculpo com facilidade. Durante anos achei convictamente que as minhas virtudes eram muito poucas e só via defeitos em mim.
Fiz psicoterapia durante um ano, há pouco tempo, não apenas por tudo isto mas muito por tudo isto…
Ajudou! Já descobri que não tenho de ser perfeita e que tenho mais virtudes do que imaginava.
As marcas vão ficar para sempre, a forma como eu lido com elas pode mudar, mas as marcas estão cá. Já foi há 10 anos que fui desassociada e ainda tenho momentos de raiva, cada vez menos mas ainda os há.
Perdi uma pessoa que era como um pai para mim, e que continuo a amar como pai. Perdi uma vida e ganhei outra.
Hoje tenho uma vida normal, sem as vergonhas da adolescência e infância, sem as dualidades que provocam tão grandes lutas internas, sem a ambição de viver para sempre num paraíso na terra. A minha caminhada tornou-me agnóstica.
Deixei de ser uma pessoa de “sempre” ou “nunca” mas, Testemunha de Jeová: Nunca mais!
Por Ana Cláudia