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Minha vida como Testemunha de Jeová



Sou natural do concelho de Vila Nova de Famalicão, norte de Portugal. Decorria o ano de 1973, o meu pai vendia nas feiras e teve conhecimento das Testemunhas de Jeová através de um outro feirante. O meu pai era um homem preocupado com a família e sempre procurou melhorar a sua situação económica, mas era muito temperamental e bastante violento, especialmente com minha mãe e com os filhos. A verdade é que a partir da altura em que eu soube que ele estava a frequentar as reuniões das Testemunhas de Jeová, lembro-me de comentar com meus amigos: ”o meu pai está diferente”. Eu sabia que isso se devia à sua nova religião, embora ele apenas fosse um estudante. Um dia meus pais me convidaram a assistir a uma reunião!

Em 1973, a organização das Testemunhas de Jeová era proscrita em Portugal. Praticamente não havia Salões do Reino, as reuniões eram feitas em casas particulares mudando-se continuamente de casa por causa de possíveis denúncias. O trabalho de testemunho era feito às escondidas sem que os publicadores usassem algum elemento visível, como por exemplo uma pasta, levando os livros e folhetos nos bolsos, para não chamarem à atenção. O que é certo, é que me lembro de na primeira reunião ter gostado do que vi e ouvi. Todos eram muito calorosos e hospitaleiros, tendo chamado à minha atenção ouvir falar num novo mundo que brevemente iria substituir este velho sistema marcado por guerras, crime, fome e morte.

Em Novembro desse mesmo ano aceitei ter um estudo da Bíblia e comecei a assistir regularmente a todas as reuniões. Em Janeiro de 1974 comecei a sair ao testemunho e em Julho fui baptizado no rio Lima em Ponte de Lima. Eu era um jovem apenas com 18 anos e nunca tinha tido vícios, nem sequer namorado. Tinha a minha mente pronta para fazer progresso rapidamente! Lembro-me bem que apesar de não estar baptizado a minha primeira designação foi uma parte na Reunião de Serviço de 10 minutos. No fim todos aplaudiram literalmente!

O ambiente neste ano era de grande expectativa, tinha havido a Revolução de Abril em Portugal e em muitos outros países estavam em curso mudanças de governo. Aproximava-se rapidamente o ano de 1975, ano relativamente ao qual as publicações davam a entender que ocorreria o Armagedão. Por exemplo, o livro que eu estudei “A Verdade que Conduz à Vida Eterna”, o denominado “ a bomba azul” pelas Testemunhas de Jeová por causa da sua enorme tiragem, dizia na página 95:

“Pessoas nascidas há tantos quantos cinquenta anos atrás não poderiam ver "todas estas coisas". Apareceram no cenário só depois de os eventos preditos já terem começado a ocorrer. Mas, ainda há pessoas vivas que viveram em 1914 e viram o que aconteceu então, e que tinham idade suficiente para ainda se lembrarem destes eventos. Esta geração já está ficando bastante idosa. Um grande número dela já faleceu. No entanto, Jesus disse definitivamente: "Esta geração de modo algum passará até que todas estas coisas ocorram. "Alguns destes ainda estarão vivos para ver o fim deste sistema iníquo. Isto significa que resta apenas pouco tempo antes de vir o fim! (Salmo 90: 10 [89: 10, CBC]) Portanto, agora é o tempo em que precisa agir com urgência se não quiser ser arrasado junto com este sistema iníquo”.

Foi usado neste parágrafo o texto de Salmos 90:10, onde se menciona que a idade do homem é em si mesmo 70 anos e poderá chegar aos 80 anos. Portanto, a explicação era de que os que começaram a ver os sinais dos últimos dias deveriam ter em 1914 idade suficiente para os entender. E se a idade do homem, segundo o Salmo era entre 70 e 80 anos, isto conjugado com a explicação de que em 1975 fazia 6000 anos desde a criação do homem, tudo apontava para que o Armagedão em 1975.

Mais ou menos em Março de 1975 ouvi o superintendente da congregação dizer ao meu pai: “quer apostar comigo, em como daqui a 6 meses estamos no novo mundo?”.

O facto de o fim não ter ocorrido em 1975 não me afectou muito, embora o tenha feito com muitas outras pessoas. Conheci pessoas que chegaram a esconder no sótão da casa uma grande quantidade de mantimentos, pois “aproximava-se a grande tribulação” e era preciso ter alimentos para passar esses tempos difíceis. Conheci pessoas que venderam suas casas e usaram o dinheiro da venda para servirem como pioneiros em outras terras com a ideia de que o fim estava mesmo aí ás portas e era urgente salvar vidas. Depois, como o fim não veio em 1975, tiveram que ir trabalhar novamente para sustentar suas famílias!

O MEU PROGRESSO NA ORGANIZAÇÃO

Eu fazia parte de uma congregação formada há pouco tempo, com poucas pessoas. Os que tomavam a dianteira eram pessoas pouco cultas, levados mais pela emoção e entusiasmo de sobreviver ao fim do sistema do que por plena devoção. Alguns eram feirantes como o meu pai e havia muita inveja e ciúme entre eles e suas famílias por causa dos privilégios. Na altura, o que é hoje a comissão de serviço, era composta pelo presidente, o servo de campo e o servo de contas, existindo todos os anos um rodízio entre eles. Era sempre um problema na congregação!

Após o meu baptismo como já mencionei o meu progresso foi rápido e relativamente fácil. Eu tinha que viajar cerca de 15 quilómetros de bicicleta todos os Domingos de manhã para participar na pregação junto com a congregação. Nos dias de chuva chegava todo molhado e secava a roupa no corpo. Para as reuniões ia de carro com a minha família. Muitas vezes servia como pioneiro temporário, como eram chamados na altura, com a obrigatoriedade de fazer 90 horas na pregação durante um mês. Com 22 anos, já casado, fui designado servo ministerial e ancião aos 27.

Tive sempre muitos privilégios, quer na congregação, quer nas assembleias de circuito e de distrito. Na congregação fui responsável pela literatura, pelas contas e pelo serviço dos indicadores. Como ancião, fui Secretário, Superintendente de Serviço e Superintendente Presidente de congregação durante 20 anos. Como mais tarde se formaram novas congregações no concelho de Vila Nova de Famalicão, fui designado Superintendente de Cidade. Fazia também parte das comissões judicativas especiais. Nas Assembleias fui responsável pelas equipes de segurança, pelo baptismo, pelo sistema sonoro, electricidade e instalações. Servi como membro das comissões dos Congressos de Distrito e também como Superintendente de Assembleias de Circuito, sendo quase sempre um dos oradores.

Não digo isto para me gabar, mas apenas para salientar que desde que entrei para a congregação sempre estive muito ocupado com a congregação e com os meus “privilégios”. Nestas circunstâncias, com um emprego desgastante e com uma família para cuidar é difícil ter tempo para outras coisas. Apenas temos um alvo ”Servir os interesses do reino”. Mas eu sentia-me bem, pois pensava que estava a agradar a Deus e a servir os interesses dos irmãos. Era como se estivesse ”vigiando sobre as suas almas”, como diz numa carta do apóstolo Pedro.

COISAS QUE AFECTARAM O MEU ENTUSIASMO

Para mim é evidente que não se abandona uma religião em relação à qual estamos convencidos de que é a “verdade” de um momento para o outro. Mesmo que cometamos um pecado sério é sempre possível remediar a situação e permanecer. Ou se houver desassociação é possível o arrependimento e o retorno. Muitos são desassociados e não descansam enquanto não são readmitidos. Claro que em muitos casos é também porque têm “dentro” a família e é necessário ser readmitido para que haja um relacionamento normal, não tanto pelo arrependimento. A pessoa que me deu o estudo já foi desassociado e readmitido três vezes e foi novamente desassociado recentemente.

Quando alguém sai e não quer voltar como é o meu caso têm inevitavelmente que existir razões muito fortes. Quais foram as principais razões no meu caso? Penso que foi uma sequência de mudanças e atitudes por parte da organização ao longo dos anos, nomeadamente:
 
•    As mudanças graduais na forma de providenciar refeições nas assembleias;
•    As mudanças na forma de oferecer as publicações ao público;
•    A ligação da organização à ONU por 10 anos;
•    As mudanças doutrinais sobre o serviço cívico;
•    As mudanças doutrinais sobre a “geração que não passará”;
•    As mudanças doutrinais sobre as transfusões de sangue;
•    O autoritarismo de alguns superintendentes de circuito;
•    O financiamento da construção dos Salões do Reino;
•    A excessiva preocupação com os números por parte da organização em detrimento da preocupação para com as reais necessidades das pessoas.

Eu fui o primeiro ancião local a ser designado em todo o concelho. Quando decidi sair, existiam sete congregações que ainda se mantêm. Durante trinta anos participei na designação de dezenas de anciãos e servos ministeriais, tendo trabalhado com todos eles nas diversas congregações. Existiam à data da minha saída três anciãos na família e no entanto, não houve nem sequer um que tivesse a preocupação de me ligar a expressar sua preocupação. Cheguei à triste conclusão de que, como alguém já disse, na organização nós não temos irmãos nem amigos, “temos companheiros de crença”. Quando deixamos a organização tudo se evapora!

Estou consciente de que por mais escândalos que se conheçam relacionados com as religiões, as pessoas sempre encontrarão uma justificação para continuarem filiados nelas. Veja-se a Igreja Católica com os seus escândalos relacionados com a pedofilia, actividades financeiras questionáveis, mudança constante nas doutrinas, atrocidades cometidas no passado e no presente em nome de Deus por demais evidentes e a abundância de provas de que o assunto “Fátima” é uma descarada vigarice. no entanto as pessoas continuam a acreditar naquilo que querem.

Penso da mesma forma sobre as Testemunhas de Jeová. Por mais provas que apresentemos sobre esta enorme vigarice em que milhões têm caído, apenas “abrirão os olhos aqueles que assim o desejem”.

Como disse Arthur Schopenhauer "As religiões, assim como as luzes, necessitam de escuridão para brilhar". Enquanto a ignorância, a pobreza e a miséria humana existirem, sempre haverá pessoas a acreditar em alguma coisa de sobrenatural mesmo que tudo não passe de utopia. Sempre haverá líderes religiosos sem escrúpulos que se aproveitam da crendice humana.

Por outro lado também é verdade que, como diz a minha esposa “felizes os que acreditam em alguma coisa”. Os que têm fé em alguma coisa conseguem com a sua fé, mesmo sem ser provada, suportar as dificuldades com outra atitude e por vezes acontecem autênticos milagres.

É para mim muito bom saber que há pessoas que saíram e conseguem com a cabeça levantada levar a sua vida com dignidade e verdadeiro amor. Também é muito bom saber que existem pessoas que se organizam para ajudar aqueles que saem da organização das Testemunhas de Jeová a não se sentirem abandonados, pois sabem que muitos em todo o mundo estão na mesma situação e conseguem sobreviver sem lamentos ou arrependimentos.


Hocosi, Vila Nova de Famalicão, Agosto de 2012

© 2015 Ex - Testemunhas de Jeová em Portugal

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